Walter Franco.
O poeta do concreto. Modernista. Concretista.
Versos esparsos entre o som e o silêncio, entre o sólido e o líquido, em lento movimento.
Walter Franco é a ruptura entre o certo e o incerto, entre o aqui e o lá.
Não há identidade — há ausência de tudo.
Mas uma realidade concreta e urbana rompe, viva.
Como um processador lógico e musical, ele absorve tudo ao redor — o que o atrai e o que o repele.
Ícone do experimentalismo, dedicou os primeiros anos de sua trajetória a romper com o convencional.
Em uma de suas primeiras aparições públicas, no Festival Internacional da Canção (TV Globo, 1972), subiu ao palco com seu violão e apresentou uma fragmentação poético-musical, quase como um mantra, desfiando:
Cabeça...
saiba...
cabeça...
irmão...
saiba que ela pode explodir...
ou... não...
Seus dois primeiros álbuns são recheados de composições extremamente criativas e instigantes.
O álbum Ou Não (1973) traz a icônica Cabeça, última faixa do disco — vale lembrar que, naquela época, a audição se fazia integralmente, do lado A ao lado B, sem pular faixas.
Com dez canções, o disco apresenta uma coleção que navega entre o melódico e o difuso. Em No Fundo do Poço, é incrível perceber o arranjo com sintetizador, violão, berimbau, vozes ecoadas e piano. Walter Franco tinha um domínio admirável sobre os elementos que usava em sua música — e sobre como apresentá-los.
Transitando entre a valsa, o samba, o rock, o forró e o psicodélico, ele o faz com naturalidade, criando uma sonoridade que aguça a sensibilidade em meio a uma dissonância quase absoluta.
Me Deixe Mudo é outra canção do álbum que merece atenção.
Em Xaxados e Perdidos, um acordeon abre o xaxado, até que tudo se rompe: como em um galpão vazio, sons dissonantes e abafados sustentam a percussão, até que, de repente, tudo retorna — acordeon, vozes, dissonâncias e canto.
Em 1974, Walter Franco lançou Revolver, álbum icônico que consolidou o artista como uma voz genuína, lírica e inventiva da música brasileira.
O disco começa com Feito Gente — um rock direto, cru, sem experimentalismos, mas de uma intensidade raramente vista na produção nacional da época:
Feito gente / feito fase /
eu te amei como pude /
fui inteiro / fui metade /
eu te amei como pude.
Aqui, Walter prova seu domínio sobre a música, sem se preocupar em ser lógico ou coerente.
Depois do banho de rock, o disco mergulha em um espectro suspenso, de sensações pinkfloydianas, com o poema concretista Éter na Mente / Eternamente.
Mal se sai do transe e já se entra no canto de Mamãe D’Água — uma ode lírica a Yara, conduzida por modulações ascendentes:
Yara eu te amo /
Yara eu te amo muito /
Yara eu te amo muito mais agora /
Yara eu te amo muito mas agora é tarde...
Yara eu te amo muito mas agora eu vou dormir...
A música então se inverte, retrocede, e termina como começou:
Yara, eu te amo.
Logo depois, um baixo seco, uma bateria contida e um piano envolvem o ouvinte em um ambiente jazzístico, até que uma levada de samba se sobrepõe, e Walter canta:
Foi teu mestre que me ensinou /
foi meu mestre que te ensinou...
Essas são apenas duas amostras do universo que habita Revolver, um disco que precisa ser escutado — e aprendido — por quem ama a música popular.
Após esse período de intensa criatividade, Walter entrou em recesso.
Talvez buscasse se libertar do estigma que a mídia da época lhe impôs, chamando-o de “o maluco da Cabeça”.
Quatro anos depois, em 1978, retornou com o álbum Respire Fundo, muito bem produzido, com arranjos primorosos e menos experimentalismo.
Logo na faixa-título, deixa clara sua nova direção:
Abra os braços, respire fundo /
e corte os laços deste mundo /
com sua imagem e semelhança /
nos mesmos traços de uma criança.
Aqui, nota-se uma incursão espiritual em seu universo poético.
O disco traz talvez seu maior sucesso comercial: Respire Fundo e Coração Tranquilo, com o célebre verso:
“Tudo é uma questão de manter /
a mente quieta, a espinha ereta /
e o coração tranquilo.”
Mas o que jamais se perde em sua obra é a capacidade de transitar entre as sonoridades.
A canção Lindo Blue é uma das mais surpreendentes do álbum.
Em 1980, grava Vela Aberta, cuja faixa-título homenageia seu pai, o poeta Ed Franco.
O disco também fez sucesso e traz a clássica Canalha, um rock carregado de crueza, apresentado no Festival Abertura (TV Tupi, 1979), onde conquistou o segundo lugar:
É uma dor canalha / que te dilacera /
é um grito que se espalha / também pudera /
não tarda e nem falha / apenas te espera /
num campo de batalha / um grito que se espalha /
é uma dor canalha!
Depois, o vento do ostracismo soprou sobre o artista — mas Walter Franco jamais deixou de ser uma referência lembrada por quem compreende a arte como ruptura e reinvenção.
Em 2001, gravou Tutano, álbum que soa como um reencontro com suas origens.
A primeira faixa, Nasça, retoma sua poesia concreta em meio a melodias sutis, gaitas, xilofones e violões — criatividade à toda prova.
O tom se mantém ao longo das dez faixas do disco, que ainda traz uma regravação de Cabeça, reafirmando o mito:
Cabeça, irmão.
Saiba que ela pode explodir.
Ou não.
Walter Franco deixou este planeta em 2019 — um gênio de coração tranquilo.
Algumas canções selecionadas de Walter Franco estão reunidas nesta playlist:
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P.S.
É importante reparar que os dois primeiros álbuns de Walter Franco possuem também grande valor gráfico.
O disco Ou Não apresenta uma capa inteiramente branca, com a imagem realista de uma mosca no centro da capa — — um detalhe mínimo que dialoga com o espírito minimalista e provocador do álbum.
Já a capa de Revolver (cujo título, não por acaso, remete ao clássico dos Beatles de 1966) traz uma fotografia frontal de Walter Franco atravessando a rua, vestido com terno e sapatos brancos, mãos nos bolsos — uma referência direta à icônica imagem de John Lennon na capa de Abbey Road.
Além disso, há uma inovação notável: o título do álbum e o nome do artista estão impressos em braile, em alto-relevo — um gesto simbólico e sensorial que amplia o campo perceptivo da arte, transformando o disco em uma experiência tátil, visual e conceitual.detalhe mínimo que dialoga com o espírito minimalista e provocador do álbum.
💿 Discografia essencial
Ou Não (1973) – Álbum de estreia, lançado pela Continental. Mistura poesia concreta, ruídos, minimalismo e eletrônica primitiva. Destacam-se “Cabeça”, “Me Deixe Mudo” e “Eternamente”. É considerado um dos discos mais inovadores da música brasileira.
Revolver (1975) – Mais melódico, mas ainda denso e filosófico. Faixas como “Feito Gente”, “Canalha” e “Mamãe D’Água” revelam um compositor maduro e reflexivo.
Vela Aberta (1979) – Produção mais “aberta” ao público, com arranjos refinados e letras místicas. Contém “Serra do Luar”, grande sucesso com Ney Matogrosso.
Walter Franco (1982) – Álbum homônimo com forte presença do rock e da new wave. Canções como “Respire Fundo” e “Canalha” ganharam notoriedade.





