11/11/2025

Walter Franco — o poeta do concreto


 

Walter Franco.

O poeta do concreto. Modernista. Concretista.
Versos esparsos entre o som e o silêncio, entre o sólido e o líquido, em lento movimento.

Walter Franco é a ruptura entre o certo e o incerto, entre o aqui e o lá.
Não há identidade — há ausência de tudo.
Mas uma realidade concreta e urbana rompe, viva.
Como um processador lógico e musical, ele absorve tudo ao redor — o que o atrai e o que o repele.

Ícone do experimentalismo, dedicou os primeiros anos de sua trajetória a romper com o convencional.
Em uma de suas primeiras aparições públicas, no Festival Internacional da Canção (TV Globo, 1972), subiu ao palco com seu violão e apresentou uma fragmentação poético-musical, quase como um mantra, desfiando:

Cabeça...
saiba...
cabeça...
irmão...
saiba que ela pode explodir...
ou... não...



Seus dois primeiros álbuns são recheados de composições extremamente criativas e instigantes.

O álbum Ou Não (1973) traz a icônica Cabeça, última faixa do disco — vale lembrar que, naquela época, a audição se fazia integralmente, do lado A ao lado B, sem pular faixas.
Com dez canções, o disco apresenta uma coleção que navega entre o melódico e o difuso. Em No Fundo do Poço, é incrível perceber o arranjo com sintetizador, violão, berimbau, vozes ecoadas e piano. Walter Franco tinha um domínio admirável sobre os elementos que usava em sua música — e sobre como apresentá-los.
Transitando entre a valsa, o samba, o rock, o forró e o psicodélico, ele o faz com naturalidade, criando uma sonoridade que aguça a sensibilidade em meio a uma dissonância quase absoluta.

Me Deixe Mudo é outra canção do álbum que merece atenção.
Em Xaxados e Perdidos, um acordeon abre o xaxado, até que tudo se rompe: como em um galpão vazio, sons dissonantes e abafados sustentam a percussão, até que, de repente, tudo retorna — acordeon, vozes, dissonâncias e canto.

Em 1974, Walter Franco lançou Revolver, álbum icônico que consolidou o artista como uma voz genuína, lírica e inventiva da música brasileira.
O disco começa com Feito Gente — um rock direto, cru, sem experimentalismos, mas de uma intensidade raramente vista na produção nacional da época:

Feito gente / feito fase /
eu te amei como pude /
fui inteiro / fui metade /
eu te amei como pude.

Aqui, Walter prova seu domínio sobre a música, sem se preocupar em ser lógico ou coerente.

Depois do banho de rock, o disco mergulha em um espectro suspenso, de sensações pinkfloydianas, com o poema concretista Éter na Mente / Eternamente.
Mal se sai do transe e já se entra no canto de Mamãe D’Água — uma ode lírica a Yara, conduzida por modulações ascendentes:

Yara eu te amo /
Yara eu te amo muito /
Yara eu te amo muito mais agora /
Yara eu te amo muito mas agora é tarde...
Yara eu te amo muito mas agora eu vou dormir...

A música então se inverte, retrocede, e termina como começou:
Yara, eu te amo.

Logo depois, um baixo seco, uma bateria contida e um piano envolvem o ouvinte em um ambiente jazzístico, até que uma levada de samba se sobrepõe, e Walter canta:

Foi teu mestre que me ensinou /
foi meu mestre que te ensinou...

Essas são apenas duas amostras do universo que habita Revolver, um disco que precisa ser escutado — e aprendido — por quem ama a música popular.

Após esse período de intensa criatividade, Walter entrou em recesso.
Talvez buscasse se libertar do estigma que a mídia da época lhe impôs, chamando-o de “o maluco da Cabeça”.

Quatro anos depois, em 1978, retornou com o álbum Respire Fundo, muito bem produzido, com arranjos primorosos e menos experimentalismo.
Logo na faixa-título, deixa clara sua nova direção:

Abra os braços, respire fundo /
e corte os laços deste mundo /
com sua imagem e semelhança /
nos mesmos traços de uma criança.

Aqui, nota-se uma incursão espiritual em seu universo poético.
O disco traz talvez seu maior sucesso comercial: Respire Fundo e Coração Tranquilo, com o célebre verso:

“Tudo é uma questão de manter /
a mente quieta, a espinha ereta /
e o coração tranquilo.”

Mas o que jamais se perde em sua obra é a capacidade de transitar entre as sonoridades.
A canção Lindo Blue é uma das mais surpreendentes do álbum.

Em 1980, grava Vela Aberta, cuja faixa-título homenageia seu pai, o poeta Ed Franco.
O disco também fez sucesso e traz a clássica Canalha, um rock carregado de crueza, apresentado no Festival Abertura (TV Tupi, 1979), onde conquistou o segundo lugar:

É uma dor canalha / que te dilacera /
é um grito que se espalha / também pudera /
não tarda e nem falha / apenas te espera /
num campo de batalha / um grito que se espalha /
é uma dor canalha!

Depois, o vento do ostracismo soprou sobre o artista — mas Walter Franco jamais deixou de ser uma referência lembrada por quem compreende a arte como ruptura e reinvenção.

Em 2001, gravou Tutano, álbum que soa como um reencontro com suas origens.
A primeira faixa, Nasça, retoma sua poesia concreta em meio a melodias sutis, gaitas, xilofones e violões — criatividade à toda prova.
O tom se mantém ao longo das dez faixas do disco, que ainda traz uma regravação de Cabeça, reafirmando o mito:

Cabeça, irmão.
Saiba que ela pode explodir.
Ou não.

Walter Franco deixou este planeta em 2019 — um gênio de coração tranquilo.

Escute
Algumas canções selecionadas de Walter Franco estão reunidas nesta playlist:
🎧 Ouça no Spotify

P.S.
É importante reparar que os dois primeiros álbuns de Walter Franco possuem também grande valor gráfico.
O disco Ou Não apresenta uma capa inteiramente branca, com a imagem realista de uma mosca no centro da capa —  — um detalhe mínimo que dialoga com o espírito minimalista e provocador do álbum.

Já a capa de Revolver (cujo título, não por acaso, remete ao clássico dos Beatles de 1966) traz uma fotografia frontal de Walter Franco atravessando a rua, vestido com terno e sapatos brancos, mãos nos bolsos — uma referência direta à icônica imagem de John Lennon na capa de Abbey Road.
Além disso, há uma inovação notável: o título do álbum e o nome do artista estão   impressos em braile, em alto-relevo — um gesto simbólico e sensorial que amplia o campo perceptivo da arte, transformando o disco em uma experiência tátil, visual e conceitual.detalhe mínimo que dialoga com o espírito minimalista e provocador do álbum.





💿 Discografia essencial

  1. Ou Não (1973) – Álbum de estreia, lançado pela Continental. Mistura poesia concreta, ruídos, minimalismo e eletrônica primitiva. Destacam-se “Cabeça”, “Me Deixe Mudo” e “Eternamente”. É considerado um dos discos mais inovadores da música brasileira.

  2. Revolver (1975) – Mais melódico, mas ainda denso e filosófico. Faixas como “Feito Gente”, “Canalha” e “Mamãe D’Água” revelam um compositor maduro e reflexivo.

  3. Vela Aberta (1979) – Produção mais “aberta” ao público, com arranjos refinados e letras místicas. Contém “Serra do Luar”, grande sucesso com Ney Matogrosso.

  4. Walter Franco (1982) – Álbum homônimo com forte presença do rock e da new wave. Canções como “Respire Fundo” e “Canalha” ganharam notoriedade.

Tutano (2001) – Retorno à gravação após quase 20 anos, com som mais cru e introspectivo, reafirmando seu caráter experimental.

07/11/2025

Tom Zé


 

Tom Zé é gênio.

Gênio musical inventivo, que ventila a morosidade da vida.
Incrível a forma como concebe a música, seus arranjos — há mais riqueza na musicalidade do que na letra.
Mas a letra jamais deve: são ricas, poéticas.

Porém, quando se ouve Tom Zé, a primeira coisa que bate é a musicalidade inovadora, original, única.
Surpreendentemente normal.
Sem arroubos de experimentalismo.
Ele entrega sua música e bota na cara.

Não sei se vem daí o seu lado genioso — o cansaço de ver o desprezo do mundo midiático, esse das Globos e Folhas, que o tratam como um produto exótico.

O Tom Zé é gênio.
Será possível não entender isso?

Escutem músicas dele como o samba e percebam como a ausência de som constrói a harmonia dessa canção.
Ouçam Augusta, Angélica e Consolação e entendam como o mínimo faz mais numa canção.
E como vibra!

Não estou explicando pra te confundir — como ele canta em
nem querendo transitar em busca de consolação,
quando o Largo dos Aflitos não tinha espaço pra sua aflição,
e na Estação da Luz estava tudo escuro no meu coração.

Viva Tom Zé.
Que já tá dando um Xiquexique.

Ouça XiqueXique — um forró dos brabos, em que a sonoridade inicial é feita através de um balão de ar sendo esfregado nos dentes.
Depois, um acordeon e um triângulo dão a intensidade do ritmo.
Uma introdução de dois minutos numa música de cinco — repetindo massivamente a batida envolvente.
Aí entra a voz abafada:

“Eu vi o cego lendo a corda da viola
Cego com cego no duelo do sertão
Eu vi o cego dando nó cego na cobra
Vi cego preso na gaiola da visão.”

E uma voz feminina em falsete ecoa.
Gemidos e elementos percussivos surgem.
Obra-prima.



Tom Zé, nascido Antônio José Santana Martins, em Irará, Bahia, no dia 11 de outubro de 1936, é um dos maiores inventores da música brasileira.
Formado pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, levou para sua obra o rigor da composição erudita e a espontaneidade popular do sertão.

Em 1968, lançou seu primeiro álbum, Grande Liquidação (RGE), onde já expunha, com ironia e genialidade, sua crítica à sociedade de consumo.
Participou, no mesmo ano, do histórico disco Tropicália ou Panis et Circenses (Philips), ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes.

Nos anos 70, criou alguns dos discos mais originais da MPB:

  • Tom Zé (1970, RGE), de caráter urbano e filosófico;

  • Se o Caso É Chorar (1972, Continental), uma joia de lirismo e humor;

  • Todos os Olhos (1973, Continental), seu disco mais polêmico e simbólico;

  • e Estudando o Samba (1976, Continental), considerado por críticos e músicos como uma obra-prima absoluta de desconstrução da forma e da tradição.

Em 1978, lançou Correio da Estação do Brás (Continental), um retrato da metrópole e da alienação moderna.
Nos anos 80, manteve sua produção com Nave Maria (1984, Continental), mas foi praticamente ignorado pela grande mídia.

A redescoberta veio no início dos anos 90, quando David Byrne (Talking Heads) lançou, nos Estados Unidos, a coletânea Brazil Classics Vol. 4 – The Best of Tom Zé: Massive Hits (Luaka Bop, 1990).
Dali em diante, o mundo voltou os ouvidos para ele.

Vieram obras notáveis como:

  • Com Defeito de Fabricação (1998, Trama), um estudo genial sobre o “homem-máquina”;

  • Jogos de Armar (2000, Trama);

  • Estudando o Pagode (2005, Tratore), uma opereta sobre o machismo e a mulher na cultura brasileira;

  • Vira Lata na Via Láctea (2014, Circus);

  • e Canções Eróticas de Ninar (2016, Circus).

Hoje, Tom Zé é reconhecido mundialmente como um dos mais originais e provocadores artistas da música popular.
Um inventor permanente.
Um pensador sonoro.
E, sim — um gênio.

🎧 Playlist com músicas selecionadas de Tom Zé:
Ouça aqui no Spotify


03/11/2025

Lô Borges — O Moleque da Esquina

 


    Lô Borges era um moleque que morava num edifício e, certo dia, descendo as escadas, deparou-se com uma roda de três adolescentes — um tanto mais velhos que ele — tocando violão e cantando.

    Um deles era Milton Nascimento; outro, seu irmão mais velho, Márcio Borges.

    Fascinado por aquela cena e influenciado pelo irmão, Lô foi aprendendo a tocar violão. Sem mais, foi se achegando àquela roda na escadaria do edifício — que, mais tarde, se transformaria num clube numa esquina das mais relevantes do universo da música brasileira.

Daqui, para o mundo.

    É incrível pensar que, num pequeno raio de distância em Belo Horizonte, nos anos 70, tanta gente talentosa se atraiu e criou tantas coisas lindas: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Wagner Tiso, entre outros.


O nascimento do Clube da Esquina

Em
1972, Milton Nascimento, então com trinta anos e já um sucesso nacional com Travessia, Fé Cega, Faca Amolada e Para Lennon & McCartney — e com quatro álbuns gravados — negociou com sua gravadora a produção de um novo disco, o lendário Clube da Esquina.

Entre as condições para a gravação, Milton trouxe o jovem Lô Borges, com apenas 21 anos, para dividir com ele as composições do álbum.

Dessa parceria nasceram canções eternas como Trem Azul, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e Paisagem da Janela — músicas que até hoje reverberam na memória dos que, em todo o mundo, beberam dessa fonte que, para quem ainda não bebeu, saiba: não para de jorrar.


O menino e o par de tênis

Depois de ingressar no universo das gravadoras com Clube da Esquina, Lô Borges assinou contrato e gravou, ainda em 1972, outro álbum icônico: Lô Borges — aquele do par de tênis usados na capa.

Curiosamente, após o lançamento, Lô não chegou a trabalhar o disco. Mudou-se para uma comunidade hippie no interior da Bahia, onde viveu por quatro anos, até retornar a Belo Horizonte.

Lô Borges partiu, mas seu canto será perpetuado enquanto alguém o cantar, o escutar e se reconhecer em sua visão carinhosa, musicalmente rica e poética do mundo.


🎧 Ouça o álbum Clube da Esquina
https://open.spotify.com/album/5risYG7klZCSLMNxB9dZhf?si=7AUrke5VRoqnIRowC9-TNQ

🎧 Ouça o primeiro álbum solo de Lô Borges
https://open.spotify.com/album/0fXZAZ5XejnxhgRV38SH5I?si=dNOMdja5TD6pm5ysKbVY7A


Discografia

1972Lô Borges
1979A Via-Láctea
1996Meu Filme
2001Feira Moderna
2003Um Dia e Meio
2009Harmonia
2019Rio da Lua
2020Dínamo
2021Muito Além do Fim
2022Chama Viva
2023Não Me Espere na Estação